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terça-feira, 31 de agosto de 2021

TRINTA E UM DE AGOSTO

 


Marilia, a namorada, e eu, saíamos do teatro debatendo o que acabávamos de assistir. Mas não me lembro se foi "A ópera do malandro" ou "Gota d'água", que o antigo Leopoldina levava. Era 1980, portanto, tempo bom para andar a pé por Porto Alegre, a qualquer hora das 24 disponíveis. E andamos bastante, falando cada vez com mais entusiasmo sobre o que vimos. Eis que, em 1980, já não era mais tempo bom para andar a pé por Porto Alegre em determinadas horas. Dez da noite, por exemplo.

Passando sob um viaduto, três malandros, de posse de bons argumentos para o crime, ou seja, revólver, faca e raiva, nos abordaram. Com o primeiro “argumento” colado na testa e ou outro na garganta, entreguei meu relógio e a carteira. Enquanto fazia a entrega, vi um dos malandros arrastando a namorada para um cantinho mais reservado... Gelei. Tirei minha jaqueta e couro novinha e meus sapatos, peguei a namorada de volta e fui embora andando devagar, degustando cada passo com um tiro na nuca. Ora, Marilia era um quindim e, a despeito do papo empolgado sobre teatro, no fundo, no fundo, eu tinha planos para dali a bem pouco tempo. Mas não rolou. Não naquela noite porque a flacidez tomou conta de todo minifúndio, no momento, improdutivo.

Em outro 31/08, eu estava em uma indústria, acompanhando um funcionário que tinha reunião com o diretor financeiro. Era dia de pagamento por lá. Portanto...

A porta de entrada eram duas folhas enormes de vidro, meu colega estava de costas, e eu em frente ao balcão, apenas com o casaco jogado sobre os ombros. Detalhe: eu tinha sacado uma boa importância que deveria ser paga cash aos vendedores, e que estava distribuída nos bolsos. Súbito o meu acompanhante entra em processo de voo, mas não decola, ao contrário, se estatela no chão, dez passos além de onde estava. Virei para olhar, enxerguei um cano de pistola e a primeira sentença "chão!" e ouvi a segunda sentença, essa para o pessoal de dentro do balcão: "se alguém tocar no telefone, eu apago ele!". Ok. Com um dos pés do sem vergonha nas minhas costas e o cano do revólver brincando de vai-e-vem na minha nuca, entrei em stand by. Sabia o que estava ocorrendo, mas era como num sonho. Até que, não sei quanto tempo depois, alguém tocou no meu ombro. Como estava de cara no chão, olhei de viés e vi um crachá. Ora, ladrões não usam crachás... Então levantei, tateei os bolsos, tenso... tudo lá.

Eu estava leve como uma pluma, sorridente, de bom humor, afinal, acabara de sair do estado alfa. E por óbvio que não havia mais clima para reunião alguma, então, nos despedimos do pessoal e fomos embora. Entrei no Passat do colega, sentei,  respirei fundo... Ao expirar, desceu o inferno contido. Tremi tanto que sacudia o carro. Então disse ao colega "me deixa e casa e vai descansar. Por hoje chega".

Bueno, às três horas da tarde eu fui encontrado sorridente e estabilizado, sentado no sofá da minha sala, tendo ingerido meia garrafa de estabilizador envelhecido em barril de carvalho.

Desafio a quem me conhece bem, que diga se eu marco alguma coisa para esse dia. Aqui, ó!

terça-feira, 20 de julho de 2021

VLADS REPUBLICANOS

 




As sacanagens vindas dos “homens do povo” 
Me fazem lembrar, de novo, de um antigo confrade. 
Lembram do Vlad? O Vlad Tepes, velho de guerra, 
Sanguinário cavaleiro das estepes. 
Lembro nem tanto pelo seu nome, 
mas pelo mito que ele encerra.
 
Vlad, o augusto príncipe romeno.  
Saiu da vida para entrar na história, 
Porém, com escusa glória,
E desta para a fábula 
por gostar de pescoços,
Mais precisamente das jugulares
Além de outros prazeres sádicos singulares
O moço cuja alcunha sagrou-se em mácula: 
Drácula (filho do demônio ou do dragão), 
Assim apelidado pelo povo cagão, 
E por inimigos cultivados em todos os lugares.
 
Mas Vlad não tinha fetiche por pescoço, 
Manjar duro e insosso, 
Gostava mesmo era de alvoroço 
e de fazer mágica com estaca, 
O que aqui não se destaca
E o que se diz não se chancela. 
Não é higiênico nem pudico
dizer o que gostava de fazer com ela,  
No popular, porém, eu simplifico,
Já que para nos empalar 
Quem nos comanda nem se acautela, 
Muito menos engambela. 
Vão no seco, enquanto o povo cochila,
Sem óleo ou vaselina,
Enfiando o artefato de bambu
Onde a espinha troca de nome.  
É prática comum daquela quadrilha,
Que enviamos e reenviamos a Brasília,
Para mexer no erário como se fosse bem de família, 
.
Lembro do Vlad a cada quatro anos, 
quando se descortinam novos planos, 
De velhos e novos vilões palacianos 
e seus pensamentos cartesianos
Ungimos quem nos faz enfia pelo cano 
e ajudamos a concretizar os danos
aos cofres republicanos.  
São sugadores, chupadores,
vampiros e outros extrativos vetustos, 
Como supunham ser o velho príncipe augusto, 
Que acabou se consagrando pelo susto, 
 
Quem parasita a pátria amada, 
Que nos assombra feito alma penada, 
Não quer saber de mais nada. 
Importa pouco vê-la dilapidada. 
E assim se vão, de enrabada em enrabada, 
De dia ou de madrugada,
Fazendo o que fazia o príncipe hostil:
A cada emboscada, uma empalada!
Essa é a síntese, empalados deste Brasil,
Que um dia se orgulhou de ser varonil.
 
A esperança se foi à camada pré-sal.
Fundiram o caixa do nosso arraial. 
Só faltava mesmo esse nexo causal,
Não originado em mau ciclo menstrual,
Nem por excessos de pó via nasal.
Em um tempo em que o mundo passa mal,
E exigem sacrifícios da sociedade civil,
Para cruzarmos por essa pandemia abissal,  
Surge a corja nefasta, por nós tornada casta
do republicano covil,
E triplica o seu fundo eleitoral!
Impossível ficar impassível.
Precisamos mudar de nível
Sairmos já desse estado depressivo.
Ou voltarmos de vez ao estágio primitivo,
a fim de tirarmos o nosso da estaca.
E que, enfim, a urna que tem sido a cloaca, 
Com ou sem recibo, seja o pau para matar a jararaca.
 
Os “vlads” republicanos são feitos do mesmo barro.
Eu, em nenhum deles  me agarro,
Porque priorizam sempre a própria guaiaca.
E nós aqui, feito babacas,
Aceitando de boa as reeleições!
Sou contra quem se abstém,
Voto sempre, mas não reelejo ninguém,
Muito menos nos gatos de armazém
Que fazem leis para nos tornarem reféns.

terça-feira, 18 de maio de 2021

QUO VADIS?


Raciocinamos nós outros, que passamos por algumas gerações, desde a dureza familiar da primeira metade do século 20, depois pela revolução de costumes dos anos 60 e ... Bueno, aí se foi o boi com a corda. Perderam-se os limites e os culpados estão bem aqui, ó: nós, precursores dessa tal liberdade, que não percebemos que a fronteira com a libertinagem nem era assim tão larga. Pois racionamos como há de ser o mundo logo ali, com o saldo de gente que restar (saldo genérico e quantitativo), olhando pelo prisma alarmista que verbera pela grande mídia e faz eco entre os nossos medos.

Haveremos de nos encontrar, mantendo distanciamento social, sem apertar as mãos, sem dois ou três beijos... Sorrisos moderados, quiçá escondidos, já que gargalhadas geram perdigotos; contatos físicos serão arriscados, e logo mais virá uma outra geração que não há de saber o que ou o quanto significa um abraço. Falo de um ABRAÇO, desses que já nos fazem tanta falta. E a juventude nas baladas, que há bem pouco se enfileirava para beijar na boca, contabilizando, e as vezes se perdendo nas contas, de quantas bocas foram beijadas? Nem pensar. Ou haverão de criar camisinhas especiais para bocas e línguas que mantenham a sensação de "pele com pele". Bah!
Por este último prisma, a verdade é que os excessos liberais, a par de nos ter criado como seres extremamente afetivos, também acabou vulgarizando a arte da sedução. Modernamente as coisas se tornaram bem mais fáceis e as três melhores coisas da vida, que antes se dizia ser um uísque antes e um cigarro depois, hoje se basta com um olhar antes e uma pergunta depois, tipo: "qual é mesmo teu nome?". Essa banalização da conquista, não por culpa dela nem das pessoas, claro, haverá de ser agora uma tarefa de alto risco. Que se virem os que vierem! As dificuldades serão outras. 
Sinceramente? Gostei de ter passado a minha vida pela fase um e dois do processo que me delegaram nesse "vale de lágrimas", tendo de driblar as dificuldades que deram gosto às conquistas e amargando dores e frustrações que tanto me ensinaram. Arrependimentos e perdões são inúteis. Fazem parte das tais águas passadas que não movem moinhos. Tudo isso de acordo com o que dizia vó Miroca. E afinal, as penitências físicas já entram a crédito nas minhas remissões.  
Mas ainda assim pedindo perdão pelos maus ensinamentos ou pela falta deles, que dei aos filhos, calço serenamente minhas pantufas, agradecendo ao Velho a oportunidade de ter atingido a condição de grupo de risco, lúcido, e vivendo minuto a minuto fora do modo automático. Não facilito. 
Fiquem bem. Eu... Me viro. 

terça-feira, 6 de abril de 2021

HELENA

 




Arthur não perdia os bailinhos nos anos 70. Ia a todos os possíveis e a mais não ia por concomitância. E as parcerias, guris e gurias, eram sempre as mesmas. Ou quase.

Era temporada de férias, dezembro, e Arthur pisou no salão já com olhar de varredura. Circulou, cumprimentou pessoas, identificou os pares, oportunidades, ameaças e tal.

Cruzou os olhos com alguém que não conhecia... Cruzou e voltou. Chamam de olhar fixo, mas aquilo era um pouco mais. Foi uma troca fulminante de olhares que se acharam, como se há muito se procurassem. Era uma menina nova no lugar, acompanhada por Regina, sua amiga, confidente, parceira de dança. Imantaram-se até  o chamado de Regina. Arthur foi até a mesa seguindo o traçado dos olhos, reafirmando a tese de que a linha reta é a menor distância entre dois pontos.

- Arthur, esta é minha prima Helena, que mora em Minas.

- Oi, prima Helena. Vou dizer algo que você deve ter cansado de  ouvir hoje: como você é linda!

- Oi Arthur, obrigada. Mais ou menos já conheço você. Regina fala muito a seu respeito.

-  São calúnias. Tudo mentira, juro. Me dê a chance de provar.

Juntaram-se mais amigos e um, em especial não perdeu tempo. Pegou Helena pela mão e foi dançar, como se já se conhecessem há tempos. Arthur que já estava perturbado desde a troca de olhares, impactou-se. “Como assim? Será que já se conheciam? Merda!” Dançaram e dançaram sem folga, para a contrariedade de Arthur, que esquecera que estava junto da sua velha companheira de danças.

- Ok. O próximo parente que eu convidar para passar as férias aqui será um primo – disse Regina brincando, mas visivelmente chateada.

- Oi? Claro, por que não dançamos?

Mas Arthur não tirava os olhos de Helena, que lhe retribuía, mas desviava o olhar, como se desse um aviso de não conformidade. Dançava e conversava alegremente com Emílio. “Será que não terei chance? O cara não larga o osso”. E enfim pararam.  Arthur e Regina também pararam, óbvio.

Emílio puxou Arthur até o bar, com a desculpa de comprarem refrigerantes.

- Olha só, bicho, desde que Helena chegou estou investindo forte nela. Tive a sorte de vir no mesmo ônibus que ela, começamos a conversar e nos entrosamos. Portanto... Cai fora! Conheço muito bem essa ligação entre seus olhos e suas garras. Certo?

“Puta que pariu!”

- Não sei, mano. Ela me atordoou. Não posso prometer muita coisa além de respeitar uma distância mínima. Por enquanto vou deixar você em paz, mas se é assim vou embora. Não vou ficar aqui.

E Arthur não voltou à mesa, dando um tchauzinho à distância.

- O que deu nele? – perguntou Regina.

Emílio olhou para Helena, Regina também olhou para a prima que se constrangeu um pouco, e todos mais ou menos entenderam, só acharam uma atitude estranha e incompatível com Arthur. Um dia depois ele foi procurar Regina. Precisava falar com ela, desculpar-se, entre outras coisas.

- Regina, meu amor, sabemos um do outro desde que andávamos pelados dentro de casa, portanto nós nos conhecemos bem e não precisamos de rodeios para falar. Antes de dizer o que quero, descobri que Emílio está de quatro pela prima. Bem... Ele e eu. Uma vez você me falou sobre amor à primeira vista e eu gozei com a sua cara, lembra? Pois bem... Chegou a sua vez. Divirta-se. Estou como se tivesse sido abduzido.

- Putz! Não acredito... Bem, diga isso diretamente à destinatária. Ela está bem atrás de você e já ouviu, mas é bom repetir. Vou deixar vocês sozinhos.

Arthur não tinha a timidez entre suas características, mas aquela   era uma situação nova, diferente e ele se enredou um pouco.

- Helena...

- Não fale. Eu falo primeiro, pode ser? Ok. Quando você chegou no bailinho a gente se olhou e teve um magnetismo muito forte, sabemos que sim e não precisamos mentir ou disfarçar. Perguntei para a Regina quem era “aquele” e ela o identificou. Aliás, ela me falava a seu respeito há muito tempo e eu já conhecia muito de você. Então tratei de desviar o foco, por uma questão simples e é impressionante como você não tenha percebido – esses homens! – ela é apaixonada; louca por você! Mas me prometa, por favor, não diga que eu lhe contei isso, ok? Por favor.  Percebe por quê não podemos ter nada, não é mesmo?

- Não acredito nisso! A minha Regina? Quase uma irmã! Não sei o que fazer com isso! Estou desarmado. Helena, acho que você já entendeu o que eu sinto. Nunca aconteceu comigo nada parecido e foi logo de cara. Tenho certeza de que é isso que chamam de amor.  É algo absurdamente forte, que domina a minha vontade.

- Não sei medir muito isso. Fui educada para ter controle das coisas. O que sei é que você não está sozinho nessa tormenta. Penso em ficar até o final de janeiro, mas não sei não.

- Bah! Vai ser difícil. Lembrei do meu tio diabético, apaixonado por quindim. Dá pena de ver como olha a vitrine da confeitaria. Não quero atrapalhar as suas férias, mas também não vou poder ficar apenas olhando você. Posso ganhar um abraço?

Abraçaram-se, trocaram alguns carinhos, colaram seus rostos e Arthur quis beijá-la, mas ela colocou um dedo em seus lábios.

- Não. Por favor. Nada que eu não queira, mas não posso fazer isso com a prima. Ao menos não agora.

Os dias passavam, Arthur e Helena encontravam-se em grupo, ele sempre buscando o olhar dela que viajava entre os presentes e a vida que passava ao largo daquele campo magnético. Helena demonstrava já uma certa tristeza e Arthur experimentava um misto de revolta e frustração; vontade de forçar a barra, chutar o balde e outros atropelos. Tomou então uma decisão: viajaria. Sairia de perto. 

No final de semana, um novo evento. Um baile mesmo, com trajes sociais, vestidos longos, cabelos lambidos de um lado, cabelos edificados de outro. Arthur não era mais o mesmo e estava em dúvida sobre ir ao baile. Emílio não deixou por menos:

- Vamos lá ciumento. De hoje Helena não me escapa. Não vai querer conferir?

- Vou. Agora eu vou. E já comprei a minha passagem para depois de amanhã. Vou ficar uns tempos em Porto. Estou me enterrando e acho que estou fazendo mal à Helena. Desculpe.

Helena era loira, tinha cabelos longos, mas até então os mantinha  presos de alguma forma. Nessa noite, diferentemente do usual na época, onde se armavam em cachopas duras de laquê, ela os soltou para que varressem as costas decotadas enquanto caminhava. O vestido era o contraste do inferno. Um vermelho escuro, quase grená e que... bem... Arthur ficou em dúvidas se estava diante de um anjo ou de um demônio.  E Emílio salivando do lado.   

Regina também estava muito bonita. Aliás, tanto era o costume de tê-la por perto que nunca havia percebido no mulherão que se tornara. E tão logo viu o amigo o chamou. Arthur não foi. Não tão logo chamado. Fez ondinha, experimentou um uísque, ele que se gabava de não beber álcool, e mais uma dose e uma terceira. Parecia um bicho encurralado precisando de sedativo. Então foi à mesa.

- Nossa, mas que mulherio lindo! Vou ter que escolher com quem dançar primeiro e não será fácil.

- Arthur, vi você bebendo... É isso mesmo? - Perguntou Regina apreensiva

- Ah, uns golinhos de álcool para desinfetar uma ferida.

Todos se entreolharam e Emílio puxou o amigo para darem uma volta.

- Bicho, você não está nada bem. Acho que deve ir para casa. Vai ficar feio, olhe o seu estado. A gente sabe que não está acostumado com bebida, daqui a pouco vai fazer fiasco.

- Vou. Vou mesmo e vai ser agora.

Arthur deixou o amigo falando sozinho e voltou à mesa.

- Regina, minha querida, minha amiga, minha irmãzinha, a última pessoa do mundo que eu gostaria de magoar. Que vida linda que tivemos! Mas... Mas... E me perdoe também Emílio, mas... Helena, eu estou bêbado e vou embora. Vou mesmo. Quarta vou para Porto Alegre e talvez a gente não se veja nunca mais. Antes quero que todos saibam que eu estou completamente apaixonado por você. É mais forte que eu e muito mais forte que esse uísque horroroso que eu tomei. Vou embora, Vou embora porque o lugar onde eu gostaria de estar ou estará vago, ou ocupado por outra pessoa. Helena... Não tivemos nada, infelizmente, talvez nem possamos ter, mas prometo uma coisa: nunca, nunca mesmo vou esquecer você. Enfim, o tal amor existe e à primeira vista é ainda mais devastador. Estou destruído.  Olhe aqui ó... Pegue... É o meu coração. A partir de hoje ele começa a bater fora do meu peito. Fique com ele, não quero de volta. Acredite: é usufruto vitalício. Minha alma beija a tua com muito amor e eu me vou. O diabo me aguarda na porta do inferno e ele não gosta de esperar.  Amor, bosta de amor... 

Arthur fez o discurso bêbado, rasgado, dolorido como letra de tango, em frente a mesa onde estavam os amigos, constrangendo a todos. O baile ainda não havia começado e assim não só foi ouvido por uma grande plateia, como aplaudido,  com gritos de viva e “dá uma chance, Helena!”. Mas já era tarde. Ele tinha saído, indo embora tropeçando nos passos, tentando equilibrar-se na corda bamba da calçada. Helena estava imóvel. Olhar firme para frente, mas com os olhos borrados de uma lava preta que escorria pelas bochechas. Apesar de ter sempre o controle das coisas, fora demais e ela pediu para que Emílio a acompanhasse até a casa.

No dia seguinte e durante o dia da viagem, deu um jeito de não ser visto. Ninguém sabia onde Arthur se encontrava. Os pais apenas informavam -“saiu cedo e não disse para onde ia”. No momento de  embarcar, uma rápida despedida em casa e chegou à rodoviária em cima da hora. Não queria dar chance a nada e a ninguém que pudesse relembrar o fiasco do clube, ou despedidas melosas.

Com o pé no degrau do ônibus uma mão segurou a sua. Helena estava lá, carinha de choro e um olhar cheio de promessas impossíveis.

- Quero um abraço de despedida.

Abraçaram-se, trocaram carinhos e beijaram-se longamente, sendo separados pela buzina do motorista. Quietos e sem promessas, soltaram-se. Ato contínuo ela foi embora às pressas e ele subiu no ônibus, louco para ficar.

“Que loucura, meu Deus! Que loucura! Preciso tirar essa guria da cabeça”.

No bolso do casaco tinha ficado uma foto deixada por Helena, com uma dedicatória e um endereço de Belo Horizonte. Era, enfim, uma promessa: “você me deu seu coração, não esqueça disso. Eu entrego o meu a você, cuide bem dele. Helena”.

 II

- Esse é o livro que não consigo concluir, Arthurzinho. Não acho um fim porque talvez não tenha tido um começo. Mas são fragmentos de uma história real

Arthur estava revivendo essa história, contando-a ao neto, recém saído da adolescência, que teve seu namorico interrompido por que sua namoradinha fora morar nos EUA com os pais. Estava inconsolável. Não queria comer, se negava a ir à escola, sequer sair do quarto.

- E você nunca mais viu ela, vô?

- Vi. Tempos depois mandei uma carta e ela me respondeu. Fiquei de ir a Belo Horizonte, mas na mesma ocasião tive que voltar para ver meus velhos que estavam doentes e a coisa não aconteceu. Ela veio meses depois. Passamos um feriadão juntos em Gramado, maravilhoso, cheio de amor e promessas. Depois eu comecei a me virar para ver se encontrava trabalho por lá. Porém, passados alguns meses, ela me mandou uma carta curta, dizendo que ia para a Austrália. Ia fazer intercâmbio e aí... Bem, aí mixou tudo. É isso. Nunca mais soube dela.

Cada vez que lembrava dessa história, Arthur viajava, degustava o tempo experimentando todas as notas e aromas. Entrava em transe. De fato, como havia dito naquela fatídica noite do único porre que tomou na vida, ratificado no único momento em que estiveram juntos, nunca esqueceu Helena.   

- A vó sabia disso, vô?  

- Sua avó soube desde sempre, não tudo, claro. No leito de morte tentou falar alguma coisa que não entendi sobre a prima. Parecia importante, mas... Foi traída pela morte. Fique tranquilo. Regina e eu sempre fomos mais amigos do que um casal.

Arthur casou com Regina, com quem viveu por 35 anos. Uma relação harmônica sem sobressaltos e paixões. Uma brisa suave e morna. Tiveram um filho, Bruno, que resultou em um casal de netos, Arthurzinho e Nina, ainda criança.

Desde a morte de Regina, Arthur vivia só. Tinha imaginado uma vida intensa, mas a paixão frustrada por Helena fez com que sossegasse o pito. Não foi um caso duro demais, até porque não chegou a ser um caso, mas carregou ou carrega,  um sonho frustrado há quase meio século, e isso sim é muito duro.  

Tinha um plano para dali a pouco tempo. Com sessenta e oito anos, apesar da saúde boa,  negava-se a falar em futuro “na minha idade não existe futuro e passado foi minutos atrás. Só existe  presente e eu tenho que prestar a atenção em tudo, caso queira aproveitar a vida. Mas eu reconheço que vivo com um pé no passado”. O plano consistia em mudar-se para um condomínio de idosos, com facilitadores e recursos para uma vida independente. Seu foco era mudar-se para Caldas Novas, em Goiânia, onde conhecera um local desses, com toda  a estrutura e conforto que queria. Apenas esperava a melhor hora para anunciar aos seus.  E em um churrasco de final de semana pegou o notebook  e mostrou o vídeo do lugar ao filho, nora e netos.

- Tem tudo o que eu quero. Internet boa, TV a cabo. Vou poder ver meus jogos e filmes, continuar pintando, escrevendo e publicando. Já fui lá. É muito lindo e agradável.

- Mas pai...

- E aqui está o contrato. Vou mês que vem e, claro, sempre que quiserem ir me ver é só ir.

- Velho teimoso.

 II

O condomínio era composto por pequenas cabanas independentes, uma sede social e uma administrativa, com um ambulatório e supervisão médica.  Tudo simples, mas muito confortável. Já o lugar era maravilhoso, com matas, corredeiras e quedas d’água e um lago de águas termais.

Arthur não era muito bom de relacionamentos. Foi procurado por outros condôminos para fazer programas de velho, tipo jogo de cartas, bocha, dama e por aí vai. Não era a praia dele e aquilo o tornava antipático aos grupos que se formavam. Mal cumprimentavam-se. Não que fosse obrigatória, mas era bom para a convivência que todos se dessem bem.

Um tempo depois recebeu um chamado da administração. Dr. O’Neil, o administrador, gostaria de ter uma conversa com ele. Apenas para se conhecerem, mas ele sabia que deveria ter algo mais. “Mal cheguei e já arrumei confusão! Bueno...”  

- Bom dia, sou Almeida, Arthur Almeida, vim falar com doutor O’Neil. 

- Sim, só um instante.

- Bom dia, sr. Almeida. Sou doutora O’Neil. Meu marido e eu administramos o condomínio. No momento ele está em Brasília. Faz quimioterapia. Entre, sente e fique à vontade. Então... Como está se sentindo em seus primeiros dias conosco?

- Puxa. Lamento pelo seu marido. Falei com ele ano passado, quando vim conhecer o lugar. É aqui que vou encerrar meus dias, se tudo correr bem.

- “Encerrar meus dias” não é uma pauta que eu gosto. Mas diga: o que podemos fazer para que o senhor se sinta mais à vontade entre nós?

- Nada não. Tenho tudo o que preciso. Ver filmes, internet boa e tempo para escrever.

- Ah, o senhor é escritor? Que maravilha. Gostaria de ler suas publicações. Trabalha em algo atualmente?

- Sim. Quero finalizar um romance.

- Reserve o meu exemplar. Bem, mas era só isso. Gostaria de conhecê-lo. Observo que o senhor é bastante reservado e agora está explicado, não que precisasse. Cada um é dono do seu próprio espaço.

Arthur despediu-se bem impressionado com a doutora e se foi cantarolando: Que bonitos ojos tienes debajo de esas dos cejas? Vou rever "El secreto de sus ojos" hoje. "Bonitona, ela" .

Doutora O’Neil, médica, com especialização em gerontologia, era casada com Dr. Charles O’Neil, inglês e seu antigo orientador na universidade de Sidney, uma referência nessa área. Chegaram ao Brasil com o planejamento pronto para o condomínio de idosos. Compraram uma antiga pousada, reformaram e deram o toque final para o fim a que se destina.O doutor Charles O’Neil estava com 82 anos e tratava de um câncer no pulmão.

Doutora O’Neil, Helena O'Neil, ficou observando da janela o condômino caminhando em direção a sua cabana. A seguir, abriu uma gaveta e retirou uma caixinha metálica, onde guardava dezenas de cartas e uma foto. “Arthur Almeida... Arthur... Meu Arthur, como a vida ficou nos devendo coisas! E agora você está aqui. Veio morar comigo. Como pode não ter me reconhecido? Sequer desconfiado? Ah, Regina... Regina.. O que me fizeste prometer... Quando nos virmos de novo vou puxar seus cabelos”. Helena levantou-se e foi olhar-se no espelho. “É, envelheci, mas os corações continuam batendo forte e agora já não dá para destrocá-los”.

Após esse encontro, Arthur não viu mais a doutora O’Neil. Nem quando foi até a sede levar alguns livros antigos seus, destinados à biblioteca do condomínio. Deveria estar envolvida com o marido.

De fato, Helena estava cuidando do marido que piorava rapidamente e as sessões de quimioterapia, além de não surtirem o efeito desejado, fragilizavam cada vez mais o organismo. Recebeu os livros deixados por Arthur, passou rapidamente os olhos sobre eles. Abriu um que falava sobre a juventude. Leu algumas crônicas, viajou no tempo, e ,quando fechou, deixou cair uma foto que estava dentro. Uma foto bem conhecida: a mesma que dera a Arthur quando fora despedir-se dele na rodoviária, mais de meio século atrás.

“Meu Deus! Como evitar o inevitável?”  

Doutor Charles O’Neil faleceu dois meses depois.

- Doutora, sei que não há palavras para momentos como este. Também tive uma perda dessas e a gente custa a elaborar a nova realidade. Meus pêsames.

- Obrigada. Tivemos uma vida boa. Charles era um bom homem e fomos ótimos parceiros de vida. Vai fazer falta aqui. Ah, veja, essa foto caiu de um dos livros que o senhor nos deixou.

- Puxa! Que coisa boa! Há muito procurava por essa foto. Achei que a tinha perdido.  Agora vou poder concluir o trabalho. O nome dela é o título do romance: “Helena”, uma longa e interminável história de amor. Minha Helena! Obrigado, doutora.

Arthur se retirou com mais algumas palavras de conforto, uma vez que finalmente a doutora O’Neil começara a chorar convulsivamente, pedindo para ficar só. “Coitada, deveria estar ainda em choque pela perda. A ficha deve ter caído finalmente”.

O reencontro com a foto que julgara perdida deu um up nos textos. Conseguira amarrar bem a história e encaminhar um final legal. Pronto. Agora era entregar para a editora que faria o resto. Por certo que alguns ajustes ainda haveriam de ser feitos durante a revisão. 

Depois de uma obra pronta vem o relaxamento. Um vazio interminável onde o que sobra é apenas a saudade dos personagens.  Arthur, que havia encomendado pela internet o material de pintura, passaria à segunda coisa que mais lhe preenchia o tempo: pintura. Não era um virtuose, mas retratava bem, e de posse da foto que julgava perdida, iria reproduzi-la em tela. “Vai demorar. Espero não jogar tantas telas fora”.

A viuvez da doutora produziu um recolhimento além da conta. Foram algumas semanas em que sequer se ouvia falar da administradora. Mas Arthur, absorto, ou alienado como sempre, pouco percebeu isso. Até que um dia, final de tarde, enquanto tomava um chimarrão sentado na varanda recebeu uma visita.

- Boa tarde, Arthur, vou tratá-lo de você e espero o mesmo. Nunca consegui compreender como vocês, gaúchos, conseguem beber água quente em pleno verão.

- Boa tarde, doutora. Que surpresa boa! Também não entendo esse hábito, aliás nem tento entender. Tudo bem?

- Sim, está tudo bem. Ando me sentindo muito sozinha e hoje escolhi o mais solitário e retraído dos meus condôminos para conversar. Espero não atrapalhar o seu chimarrão.

- Nada. Por favor, sente-se.

Helena sentou-se à frente de Arthur e ficou um tempo quietinha, como se estivesse escolhendo um assunto para começar.

- Seu livro... Como está o seu livro?

- Terminei. Está na editora. Fiz recentemente alguns ajustes após a revisão. Deve sair mês que vem. Mas foi um livro que escrevi durante quase dez anos. Tudo por causa do final, que nunca me agradou.

- Ótimo. Não esqueça do meu exemplar. Amo finais felizes. Espero que tenha tido um final feliz para a sua Helena.

- Não sei se é feliz. É um final vago, já que é uma história que não terminou. Ou melhor: sequer começou.

- Agora você me deixou curiosa. Não me obrigue a torturá-lo para que me conte como terminou - riram.

- Ok. Vou lhe contar a última sentença. Tenho bem presente na memória porque demorei um mês para decidir como encerraria. “Cá estamos, Helena, como idealizamos na única vez em que estivemos juntos. Mas permanecemos como sempre matéria e sonho, agora no paraíso”.  É isso.

- Foi um amor de verdade?

- Se foi verdadeiro? Não sei. As vezes acho que foi um sonho. Um sonho escolhido na estante dos maravilhosos. Amei... Amei? Amo demais uma imagem desde o primeiro momento que a vi e sofro desde que se tornou lembrança.  Venha. Vou lhe mostrar a capa.

Arthur pegou Helena pela mão e a levou para dentro, onde estava a tela com a foto que havia perdido, reproduzida em tela. Ele não percebeu, mas a doutora lacrimejava mansamente. Até que uma tempestade salgada explodiu em seus olhos. Imediatamente Helena deu as costas e foi embora sem dizer uma única palavra.

Arthur ficou desconcertado, culpado, entristecido. O que teria feito de errado? “Puta que pariu! Pobrezinha! Ainda deve estar muito sentida”.

Menos de um mês depois, Arthur recebeu sua cota de livros, enviados pela editora. Uma ótima desculpa para visitar a doutora. Iria entregar-lhe o exemplar.

- Bom dia, doutora. Tudo bem? Posso entrar?

- Claro. Por favor sente-se. Estava justamente reunindo coragem para ir à sua casa pedir-lhe perdão pelo fiasco que fiz.

- Nada. Não precisa. Sua viuvez ainda é muito recente e eu compreendo.

- Não é isso. Ou não foi por isso. Você tem tempo para ouvir uma historinha?

- O que mais tenho é tempo e preenchê-lo é uma luta terrível. Por favor, fale.

- A sua história sobre a foto e o livro, que ainda não li, mas que imagino, mexeu comigo por demais. Minha história também passa por algo assim.

Helena serviu os cafés e sentou-se em frente a Arthur. 

- Eu tinha dezoito anos e conheci um rapaz, numa cidadezinha bem longe daqui. Foi daquelas coisas que não se explica pela ciência. Talvez encontre parâmetro naquilo que não podemos ver, só queremos acreditar. Ele e eu apenas nos olhamos em meio a várias pessoas e houve um magnetismo imediato, impulsivo, só controlável, porque eu sempre fui controlada, e eu digo hoje: infelizmente. Perguntei quem era "aquele" à pessoa que estava comigo, e que me era muito cara, e ela me disse: é ele. Ele, no caso, era o rapaz que era pauta permanente dela, sempre que trocávamos confidências por carta ou telefone. Ela era louca por ele e o babaca não percebia. Uma guerra dentro de mim começou de pronto. O porquê, eu não sei, mas sabia que aquele rapaz tinha muito a ver comigo. Fisicamente era o que eu havia idealizado a partir das descrições dela e depois, quando nos falamos, tinha aquela tempestade mal contida em tudo o que dizia. Era intenso, cheio de energia boa. Mas ceder ao impulso magoaria outra pessoa.  E tudo ficou pior quando soube que a recíproca era verdadeira. Enfim... Ele foi embora, embora mesmo, foi viajar e não voltou mais. Levou uma foto minha como lembrança.

- Puxa! Você parece que leu o meu livro. É mais ou menos isso. Ele levou uma foto sua e não deixou nenhuma?

- Tenho uma, mas ele não sabe. É o seguinte: quando ele percebeu que eu não arredaria pé de me manter fiel à pessoa que era apaixonada por ele, uma quase irmã minha, ele se desesperou de vez. Antes de viajar houve um baile na cidade e ele, que segundo soube, jamais havia experimentado bebida de álcool, tomou um porre e fez uma declaração pública de amor para mim, em frente a todos os que estavam no baile. Perdi o chão, flutuei nas nuvens, me apaixonei e despenquei do salto... A foto dele, bêbado, me foi entregue pelo fotógrafo da festa, alguns dias depois, com a seguinte dedicatória: “jamais ouvi uma declaração de amor tão intensa e verdadeira”.

- E eu achando que a história do meu livro, que é quase uma biografia, era algo incomum, única, extraordinária. Que nada! Quase tudo tão igual!

Helena estava impressionada com a falta de conexão de Arthur.  A ponto de perder a paciência. "Como pode ser tão abobado?"

- É isso. Bem, daqui a alguns dias devo me mudar. Estou negociando o condomínio. Não tenho condições de cuidar sozinha e a minha especialização médica é muito cara para poder contratar um colega. Inviabilizaria o projeto. Vou procurar a foto para lhe mostrar.

- Que pena! Você é das poucas pessoas que eu gosto de sentar e conversar. Estava me acostumando a ter alguém com quem podia trocar ideias. Bem. Vou autografar o seu exemplar. Dedico para...

- Helena,

- Sim, Helena. Dedico para?

- Helena. Achei, eis a foto que lhe falei. 

Arthur apanhou a foto, pareceu perder o foco e o fôlego. Ficou lapsos de segundo cabisbaixo, sentindo uma forte alteração nos batimentos cardíacos e sem levantar os olhos disse:

- Não pode ser... Não pode ser verdade.

E olhou para Helena. E viu Helena. Foi a vez de Arthur fazer o que não fazia desde que nascera seu filho. Rompeu um choro convulsivo, misto de dor e alegria, com notas de espanto.

Helena levantou-se, serviu mais um café e um copo de água e voltou a sentar-se, agora ao lado de Arthur. Parecia degustar cada lágrima jorrada, afinal, era a segunda declaração de amor intensa que recebia, meio século após a primeira. Pegou a mão dele entre as suas e falou:

- Não esqueci um minuto sequer de tudo o que vivemos e sonhamos na única vez em que estivemos juntos. Tive quase certeza de que ali era o início de uma relação com gostinho de eternidade. Tínhamos tudo a ver, pelo menos era o que eu achava. Voltei para BH com a missão de contar à Regina o que aconteceu e o que eu queria para o meu futuro. Ia contrariá-la; ia descumprir a promessa que fizera a ela, de mantê-lo à distância, tão logo ela soube que eu tinha ido à rodoviária me despedir de você.

- Que coisa... Pobre Regina. Sempre soube que o nosso casamento era uma ação entre amigos, dispostos a nos protegermos da vida. Apesar disso, como já falei, tivemos uma vida boa. 

- Era completamente louca por você. Mas preciso contar mais algumas coisas...

- Antes me prometa que não vai embora.

- Bem... Por favor, mantenha-se o mais calmo possível, porque vou lhe contar o pior. O nosso momento lá na serra rendeu um fruto. Eu engravidei. Descobri dois meses depois do nosso encontro. Estava indo ao Correio postar uma carta para Regina, onde pedia perdão e falaria do resto. No entanto, enquanto atravessava a rua para enviar a carta fui atropelada. Tive vários ferimentos no rosto, em especial no nariz, que teve de ser reconstruído. Talvez por isso você não tenha me reconhecido. Infelizmente perdi não só o nosso bebê, mas o útero também e isso mudou a minha vida. Alguém, não sei quem, talvez um transeunte com pena, fez a gentileza de postar a carta. O que sei é que Regina me respondeu rudemente tempos depois e nunca mais falou comigo. Eu fiquei destroçada muito mais por dentro que por fora. Entrei em depressão, experimentei drogas, até que meu pai chegou com a notícia do intercâmbio na Austrália. Não pensei duas vezes e acho que foi a minha salvação.  Escrevi umas dez cartas para você, porém só mandei a última, curta e objetiva, como você bem sabe e que deve ter odiado. Estava me sentindo sofrida, deprimida, castigada, desleal. Mas nunca esqueci ou deixei de amar você. Veja aqui, tenho todas as suas cartas guardadas. Isso é tudo.

- Não. Isso é nada. Você não vai fugir de novo. Olhe para mim; olhe para nós... O que temos mais a perder? E o que temos de vida pela frente? Quanto tempo? Pode não parecer, porque sou muito desligado, pareço desligado, mas o nosso link permanece. Sabemos disso desde que conversamos a primeira vez aqui, depois de tanto tempo.  Você sabe que sim, é uma ligação de alma, ancestral. Saí daqui cantando e fui rever um filme chamado "O segredo dos seus olhos". Tudo o que eu sinto por você estava em pausa, aguardando um click. Nós não precisamos ter nada. Não precisamos namorar, sequer sermos muito próximos, caso você não queira, mas nunca mais vou permitir que você se afaste de mim. Ainda assim, caso queira ir embora, saiba que eu vou atrás. Não passei uma vida inteira pendurado em uma lembrança ou a um sonho, para vê-lo esfumaçar à minha frente. Não mesmo.

 III

- Alô, velhote! Quanta saudade, vô querido! Achei que tinha esquecido de nós. Pai, vô está na linha. Quer falar com você. Beijo vô. Venha nos ver. Ah, obrigado pelo livro, isso é o que eu chamo de amor. Fui!

- Pai? Puxa, quase me queixei no conselho tutelar por abandono.

Pai e filho falaram durante meia hora. Ou melhor, Bruno ouviu o pai por quase meia hora, apenas sacudindo a cabeça, esboçando um riso, arqueando as sobrancelhas e vez por outra engasgando-se nas  poucas palavras que proferiu. Assim que desligou, ficou um tempinho absorto, com cara de incredulidade. Então chamou a família.

- Solange, venha cá, meu bem, tenho algo a contar. Arthur! Desça, vamos falar.

- Olha... Vocês não sabem da maior... O pai vai casar. E ele me disse que o Arthur sabe com quem. O que você sabe que nós não sabemos, filho?

- Ué... Como posso saber? O velho se foi morar no mato. Deve ter encontrado uma índia por lá e... Se eu sei... A menos que... Não! Não dá para acreditar! O velho tinha tudo armado! Pai, o que você sabe sobre uma tal de Helena? Essa da capa do livro?

- É brincadeira?  Helena que eu conheço, além da gerente da nossa conta, tinha uma da mãe que ela odiava. O livro é ficção. O pai é muito bom nisso.     

- Ficção é o caralho, paizinho. Lembra que me descornei aquela vez que a Liliane foi embora para os Estados Unidos? Saí com o vô, tomamos uma cerveja e ele me contou uma de suas histórias. Eu nem preciso ler esse livro para saber o que tem dentro. É a história dele com essa moça. Peraí, Tive uma ideia. Vou ligar e colocar no viva-voz

- Alô, tia Rejane? É Arthur, tudo bem? Tenho uma pergunta para fazer. Vocês tinham uma prima que foi embora não sei pra onde... era Helena, é isso? Você sabe dela?

Rejane, irmã mais velha de Regina confirmou e acrescentou que a irmã tinha brigado com a prima, antes da viagem dela, não sabia porquê. Disse que nunca mais queria vê-la e tal. Ela, Rejane, soube apenas que a prima sofrera um acidente grave, ainda quando morava no Brasil, que estava grávida, mas que perdera a criança no acidente, que tinha entrado em parafuso e depois fora embora para a Austrália. Depois disso, nunca mais soube nada.

- Mas olha, Arthurzinho, eu desconfiava que as duas tinham brigado por causa do meu cunhado, seu avô. Aí vi a capa do romance e tive certeza. É ela, a prima, quando jovem. Lembro bem. Era linda pra dedéu e causou rebuliço entre o homerio daqui, quando veio nos visitar. Beijo. Saudades.

- Escutou pai?

- Mas então ele já tinha marcado de encontrar com ela lá onde está morando. Não pode ser coincidência. Vejam só, que malandro! Bem, ele sabe o que está fazendo, e mesmo que não saiba, vai fazer igual.

Bruno foi para o computador trocar mensagens com o pai, e quase juntaram material para um novo livro.  

- Helena... É ela na capa. Agora eu entendi muita coisa das tristezas da mãe. Inacreditável isso tudo. Venha ler, Solange, ela é médica e dona do condomínio onde ele mora. Parece ficção.  Bem, vamos visitá-los no final do ano. Mas aviso: também estou apaixonado por ela.

- Eu também! - gritou Arthurzinho.

Solange, que tinha unhas poderosas, deixou mais uma marca em Bruno e apenas resmungou:

- Estamos juntas, minha sogra.